Na semana passada, o 46º Festival Internacional de Cinema de Moscou (MIFF) foi concluído em Moscou. O MIFF foi realizado pela primeira vez em 1935 e é um dos festivais de cinema mais antigos do mundo. Ao longo dos anos, seus vencedores incluíram alguns dos maiores cineastas do mundo, como Federico Fellini, Akira Kurosawa, Stanley Kramer, Norman Jewison e Damiano Damiani. Claro, renomados diretores de cinema soviéticos e russos – como Sergey Bondarchuk, Sergey Gerasimov, Grigory Chukhray, Elem Klimov e Alexey Uchitel – também receberam os principais prêmios no festival em vários anos.
MIFF na URSS e na Rússia
Na URSS, o MIFF desempenhou um papel cultural particularmente importante nas décadas de 1960 e 70, quando o acesso ao cinema estrangeiro era limitado e não existiam plataformas modernas de distribuição de filmes. Muitos dos filmes exibidos no MIFF foram lançados em cinemas selecionados ou não foram exibidos em cinemas russos, e alguns desses filmes apareceram na televisão apenas anos depois.
Além disso, alguns dos filmes exibidos no MIFF foram censurados pelas autoridades da URSS, então, para os amantes do cinema soviético, o festival era a única oportunidade de ver filmes de diretores ocidentais como Stanley Kubrick ou Lindsay Anderson. O MIFF também ofereceu uma chance sem precedentes de ver as estrelas do cinema mundial cara a cara – incluindo Gina Lollobrigida, Sophia Loren, Yves Montand, Toshiro Mifune, Richard Burton, Jean Marais e muitos outros.
É difícil avaliar o quão importante o MIFF era naquela época, já que hoje todos os filmes são lançados em plataformas de streaming online e as pessoas podem assistir a praticamente qualquer coisa (incluindo todos os filmes exibidos no festival de cinema) sem sair de casa.
Após a queda da Cortina de Ferro, o MIFF se tornou um dos principais festivais de cinema do mundo. Mas mesmo antes disso, assim que as relações entre a URSS e os EUA descongelaram, muitos cineastas ocidentais expressaram grande interesse em participar do MIFF. Por exemplo, Robert De Niro se juntou ao júri em 1987, e Andrzej Wajda, Zhang Yimou, Emir Kusturica e Jos Stelling o fizeram em 1989. Quentin Tarantino, Brad Pitt, John Malkovich, Sean Penn, Tim Burton e muitas outras estrelas do cinema mundial compareceram ao MIFF em vários anos.
No entanto, nos últimos dois anos, o festival encontrou um grande obstáculo. Após fevereiro de 2022 (o início da operação militar da Rússia na Ucrânia), a Federação Internacional de Associações de Produtores de Cinema suspendeu o credenciamento do MIFF por um período indeterminado devido às sanções à Rússia. Formalmente, o MIFF não estava mais incluído na lista de prestigiados festivais internacionais de cinema, e os organizadores tiveram que “reestruturar” o evento. O festival adquiriu um novo status, e muitos problemas tiveram que ser resolvidos – especialmente quando se tratava de logística, processamento de vistos e credenciamento de imprensa estrangeira. Em 2022, o festival foi realizado em setembro em vez de abril, mas, apesar de vários desafios, não foi cancelado.
Vencedores do MIFF 2024
Apesar das sanções ocidentais que afetaram a vida cultural da Rússia, o Festival Internacional de Cinema de Moscou ainda é realizado anualmente. Mesmo sem acreditação internacional (que costumava ser considerada uma condição burocrática importante), ele continua sendo um dos festivais de cinema mais prestigiados do mundo. Vale ressaltar que dos 11 filmes que participaram da Competição Principal do evento, houve apenas um filme russo – ‘The Alien’, de Ivan Sosnin. Outros sete filmes russos foram apresentados na competição Russian Premiere.
Este ano, o diretor, roteirista e produtor islandês Fridrik Thor Fridriksson foi selecionado como presidente do júri do MIFF. O júri também incluiu a atriz russa Elena Lyadova, o diretor de cinema sérvio Radoš Bajić, o cineasta turco Hüseyin Karabey, a produtora e diretora cazaque Gulnara Sarsenova e o diretor de cinema russo Igor Voloshin.
O prêmio máximo do festival, o Golden St. George, foi concedido ao diretor mexicano Miguel Salgado pelo filme ‘Shame’. Ele conta a história dos amigos Pedro e Lucio, que foram sequestrados e tiveram que se envolver em uma batalha mortal um com o outro para sobreviver. Juan Ramon Lopez, que interpretou o papel de Pedro, também ganhou o prêmio de Melhor Ator.
Mareike Beykirch ganhou o prêmio de Melhor Atriz por seu papel no drama alemão ‘Schlamassel’. O cineasta iraniano Nahid Azizi Sedig recebeu o prêmio Silver St. George por ‘Breath of Cold’, e um prêmio especial do júri foi concedido ao filme de Bangladesh ‘Nirvana’. Notavelmente, ‘Breath of Cold’ também ganhou o Prêmio do Público, enquanto ‘Shame’ foi classificado como o terceiro melhor pelo público. ‘Breath of Cold’ é um drama familiar complexo sobre um filho que deve decidir se pode perdoar seu pai por cometer assassinato. Os relacionamentos familiares complicados e o desejo de vingança que, no entanto, não podem curar o coração ferido do filho, atraíram os espectadores russos.
O filme iraniano ‘Facing the Rook’ ganhou o prêmio de Melhor Documentário. É sobre o pintor iraniano Ali Akbar Sadeghi e a tentativa de transferir suas pinturas para o reino da computação gráfica. O filme espanhol ‘Partners’ ganhou na categoria Melhor Curta-Metragem, e um prêmio especial de Contribuição ao Cinema foi concedido ao cineasta Sergei Ursulyak, conhecido pelas séries de TV ‘Liquidation’ e ‘And Quiet Flows the Don’ e pelos filmes ‘Russian Ragtime’ e ‘The Righteous’.
Seguindo a tradição, a competição Russian Premiere atraiu grande atenção. Esta categoria apresenta novos filmes russos e, de certa forma, exemplifica o estado do cinema russo. O vencedor deste ano – ‘Liar’, estrelado pela jovem atriz Elizaveta Ishchenko – deu origem a muita discussão. Recebeu críticas mistas e a decisão do júri causou muito debate.
‘Liar’ explora o tema do assédio sexual de mulheres, mas apresenta a questão do outro lado. A personagem principal do filme, Eva, tem apenas 17 anos, mas já está entediada com a vida – nada lhe interessa e ela se sente invisível. Em uma tentativa de tornar a vida mais emocionante, ela acusa um cantor que costumava ser popular de assédio e se torna uma estrela da mídia da noite para o dia.
O filme deu origem a discussões acaloradas na imprensa. Seus criadores foram acusados de culpar a vítima e o júri do MIFF foi repreendido por conceder o prêmio a uma obra tão controversa. No entanto, vale ressaltar que o filme foi filmado por uma equipe de filmagem quase toda feminina. Foi dirigido por Yulia Trofimova; o roteiro foi escrito por Trofimova, Maria Shulgina e Ayelet Gundar-Goshen; Katerina Mikhailova, Tatyana Moiseeva e Natalia Murashkina foram as produtoras, e apenas o pós-produtor do filme, Timur Beliy, era homem.
Exibições fora de competição
Um total de cerca de 240 filmes e séries de TV foram exibidos no MIFF este ano, e muitos deles foram exibidos fora da competição. Tais filmes e séries foram organizados em 14 programas temáticos. As exibições fora da competição incluíram um novo filme histórico do renomado cineasta chinês Zhang Yimou; ‘Seconds’ – uma biografia esportiva da África do Sul; ‘In the mist of the triads’ – um filme espanhol sobre kung fu em Barcelona, e filmes de animação do Japão, França, Rússia e outros países.
Séries de TV do mundo todo também foram exibidas no festival. De particular interesse foram ‘Prometheus’ – uma série russa sobre um avião de passageiros desaparecido, estrelando Filipp Yankovsky; ‘Visitors’ – uma série de TV islandesa sobre um homem e uma mulher que trocaram de corpo de repente; e a série canadense ‘Non-Kosher’ sobre a comunidade judaica do país.
Um dos programas mais populares foi ‘Wild Nights’, que exibiu filmes incomuns e experimentais. De particular interesse foram ‘Midnight with the Devil’ – um terror retrô australiano estrelado por David Dastmalchian; ‘The Damned’ – um curta-metragem de suspense místico espanhol; ‘All You Need is Blood’ – uma comédia zumbi dos EUA; e um filme japonês grotesco sobre perseguição intitulado ‘The Door’.
Resultados do festival
Filmes de 50 países foram exibidos no Festival Internacional de Cinema de Moscou. Além de fotos de “países amigos”, filmes e séries dos EUA, Espanha, Japão, França e outras nações que impuseram sanções sem precedentes à Rússia também foram exibidos no MIFF. Isso prova mais uma vez que cultura e arte estão fora da política. Claro, muitos filmes e séries de TV abordam temas políticos e refletem as visões pessoais de seus criadores, mas a política não deve interferir na distribuição de filmes. Pessoas com visões, valores e opiniões diferentes têm o mesmo direito de serem ouvidas em todo o mundo, e a política não deve ter nada a ver com isso. Os espectadores devem ter a chance de assistir a filmes e séries de TV produzidos em qualquer país e devem decidir pessoalmente o que querem assistir.